3 de fevereiro de 2007
A estratégia da confusão
Por Vital Moreira
O que é que mudou desde o referendo à despenalização do aborto de 1998, para admitir que o resultado pode ser diferente desta vez? A minha resposta é que muita coisa mudou e que as mudanças mais profundas não são as mais evidentes.
Para começar, é óbvio o realinhamento de forças no centro do espectro político, onde se decide no essencial o referendo. Em 1998, o PSD alinhou oficialmente com o "não", em consonância com a direita; e o PS, devido à posição do seu secretário-geral de então (Guterres), manteve-se quase à margem do referendo, deixando o protagonismo ao PCP e ao BE. Desta vez, o PSD não tem posição oficial, o que permitiu que vários dos seus deputados, dirigentes e militantes se manifestem a favor da despenalização e participem na respectiva campanha, enquanto o PS resolveu assumir toda a sua responsabilidade moral e política nesta questão.
A segunda mudança tem a ver com a indesmentível confirmação dos aspectos mais censuráveis da criminalização do aborto: (i) o Código Penal não serve para combater o aborto, pois os dados disponíveis revelam cifras preocupantes (dezenas de milhares por ano); (ii) não existe o mínimo consenso social sobre a repressão penal do aborto, que a generalidade das pessoas não denuncia nem deseja ver julgado; (iii) todavia, o Código Penal, além de clandestinizar o aborto, não deixa de fazer as suas vítimas, como mostram os vários casos de acusação, julgamento e condenação ocorridos desde 1998 (Maia, Aveiro, Setúbal, etc.). Hoje é muito mais evidente que a actual situação de repressão penal do aborto não só não serve para defender os fins da lei penal em geral, como tem efeitos colaterais muito perversos no plano da dignidade, da liberdade, da saúde e mesmo da vida das mulheres.
Mas o que há de notavelmente novo no actual referendo é a estratégia confusionista adoptada pelas forças opostas à despenalização, com o evidente propósito de lançar a maior barafunda possível sobre o que está em causa no referendo. São dois os principais instrumentos: primeiro, argumentar que a pergunta do referendo não é clara nem honesta, pois ela fala em despenalização, quando quer dizer liberalização; segundo, argumentar que, para resolver o problema penal do aborto, basta deixar de punir as mulheres que o efectuam, tendo-se multiplicado ultimamente declarações nesse sentido. No entanto, nenhum desses argumentos é procedente.
A pergunta do actual referendo é a mesma de 1998, tendo passado duas vezes no escrutínio do Tribunal Constitucional, que tem por missão verificar também se as perguntas submetidas a consulta popular são claras e não enviesadas. Como é que os partidários do status quo só descobriram agora que a pergunta é "capciosa"? A verdade é que a pergunta é mais do que clara. Quando se fala em "despenalização" de certa conduta, tanto no discurso leigo como na linguagem jurídico-penal, o que se pretende é retirá-la do âmbito do direito penal e do Código Penal, ou seja, da esfera dos crimes e das respectivas penas. Portanto, é evidente que a pergunta visa saber quem apoia, ou não, a desclassificação do aborto como crime, nos limites e condições da pergunta.
Mas não se trata de nenhuma "liberalização", como pretendem os críticos. Primeiro, porque a despenalização em causa só abrange as primeiras dez semanas de gestação, ou seja, menos de um terço do tempo normal de gravidez. Como regra, o aborto continuará a ser um ilícito criminal, salvo certas excepções, entre as quais entrará agora a interrupção da gravidez nas primeiras dez semanas. Segundo, mesmo nesse período, o aborto só passará a ser lícito, se realizado em estabelecimento de saúde legal, visto que o principal objectivo do referendo é pôr fim ao aborto clandestino. Terceiro, só a legalização proporcionará condições para fazer acompanhar a decisão de abortar de um mecanismo obrigatório de reflexão da mulher que o pretenda fazer.
A actual situação é que se traduz numa verdadeira liberalização clandestina do aborto, independentemente de prazos e do lugar da sua prática, bem como à margem de qualquer apoio ou ponderação serena da mulher grávida, que se vê frequentemente sozinha e desamparada na sua decisão. Os que criticam a suposta liberalização do aborto "a pedido" deveriam dar-se conta de que o que estão a condenar é a situação existente - ou seja, a que eles querem manter - e não a situação consubstanciada no "sim" ao referendo.
No entanto, a mudança mais surpreendente em relação ao referendo precedente tem a ver com a vaga de opositores à despenalização que agora se manifestam a favor da não punição das mulheres que abortam (com recurso a instrumentos como a suspensão do processo penal ou a invocação de "causas desculpabilizantes" automáticas). Alguns mais afoitos e irresponsáveis vão mesmo ao ponto de ser mais "liberais" do que os mais liberais, defendendo que as mulheres nunca devem ser punidas, quaisquer que sejam as circunstâncias e o estádio da gestação em que pratiquem a interrupção da gravidez! Deixando de lado estas propostas não sérias, o que é que mostra esta súbita e generalizada comiseração pelas mulheres que se sentem forçadas a interromper uma gravidez?
Descontando os casos de puro e rasteiro oportunismo, a principal ilação a retirar dessas posições é a de que muitos adversários da despenalização se deram conta de que a punição penal das mulheres que não desejam prosseguir uma gravidez indesejada já não é politicamente nem humanamente defensável e que, afinal, a defesa da vida intra-uterina tem de ser conciliada com os direitos e interesses legítimos das mulheres. Mas continuam agarrados ao dogma fundamentalista de que o aborto em si mesmo deve continuar a ser um crime.
Este contorcionismo conceptual tem, porém, duas consequências devastadoras. Primeiro, em termos de direito penal é um contra-senso manter um crime em que os principais responsáveis já não são criminalmente responsáveis. Segundo, essas soluções deslegitimam decididamente a justificação tradicional para a repressão penal do aborto, baseada na defesa da vida intra-uterina como valor ao qual deve ser sacrificada sempre a mulher grávida. De facto, como manter esse discurso, se afinal a "criminosa", ou seja, a mulher que aborta, fica isenta de qualquer punição? Terceiro, essas "soluções" não resolvem os problemas mais graves que a actual situação cria, ou seja, o estigma do crime (a mulher que aborta continua a ser "criminosa") e os malefícios do aborto clandestino e inseguro, em termos de risco para a saúde física e psíquica das mulheres. Pois é evidente que, se para as outras pessoas que sejam executantes ou "cúmplices" (médicos, enfermeiros, parteiras, maridos e namorados, etc.), o aborto continua a ser crime, como agora, então é evidente que de pouco ou nada vale esse arremedo de "despenalização" selectiva das mulheres.
Uma comparação com os discursos de há uma década, mostra que enquanto o discurso despenalizador (a favor do "sim"), apesar de politicamente mais plural, se mantém firme e consistente na defesa da despenalização do aborto até às dez semanas, independentemente do juízo individual de cada um sobre a sua censura moral ou religiosa (o que é totalmente legítimo) e sobre a necessidade de o combater, já o discurso adversário se tornou uma cacofonia desafinada e contraditória, onde a única coisa que resta é a compulsão para instrumentalizar o direito penal e a repressão criminal do Estado ao serviço de uma cruzada religiosa ou moral de uma parte da sociedade. Quando os adeptos do "não" à despenalização propriamente dita se sentem tentados a defender (ou a fingir) que também são a favor de uma qualquer "despenalização", então já abandonaram a protecção absoluta do "direito à vida do feto" e só lhes resta impor aos demais, de forma intolerante, os seus próprios códigos morais e religiosos (por mais legítimos que estes sejam).
(Público, Terça-feira, 30 de Janeiro de 2007)
O que é que mudou desde o referendo à despenalização do aborto de 1998, para admitir que o resultado pode ser diferente desta vez? A minha resposta é que muita coisa mudou e que as mudanças mais profundas não são as mais evidentes.
Para começar, é óbvio o realinhamento de forças no centro do espectro político, onde se decide no essencial o referendo. Em 1998, o PSD alinhou oficialmente com o "não", em consonância com a direita; e o PS, devido à posição do seu secretário-geral de então (Guterres), manteve-se quase à margem do referendo, deixando o protagonismo ao PCP e ao BE. Desta vez, o PSD não tem posição oficial, o que permitiu que vários dos seus deputados, dirigentes e militantes se manifestem a favor da despenalização e participem na respectiva campanha, enquanto o PS resolveu assumir toda a sua responsabilidade moral e política nesta questão.
A segunda mudança tem a ver com a indesmentível confirmação dos aspectos mais censuráveis da criminalização do aborto: (i) o Código Penal não serve para combater o aborto, pois os dados disponíveis revelam cifras preocupantes (dezenas de milhares por ano); (ii) não existe o mínimo consenso social sobre a repressão penal do aborto, que a generalidade das pessoas não denuncia nem deseja ver julgado; (iii) todavia, o Código Penal, além de clandestinizar o aborto, não deixa de fazer as suas vítimas, como mostram os vários casos de acusação, julgamento e condenação ocorridos desde 1998 (Maia, Aveiro, Setúbal, etc.). Hoje é muito mais evidente que a actual situação de repressão penal do aborto não só não serve para defender os fins da lei penal em geral, como tem efeitos colaterais muito perversos no plano da dignidade, da liberdade, da saúde e mesmo da vida das mulheres.
Mas o que há de notavelmente novo no actual referendo é a estratégia confusionista adoptada pelas forças opostas à despenalização, com o evidente propósito de lançar a maior barafunda possível sobre o que está em causa no referendo. São dois os principais instrumentos: primeiro, argumentar que a pergunta do referendo não é clara nem honesta, pois ela fala em despenalização, quando quer dizer liberalização; segundo, argumentar que, para resolver o problema penal do aborto, basta deixar de punir as mulheres que o efectuam, tendo-se multiplicado ultimamente declarações nesse sentido. No entanto, nenhum desses argumentos é procedente.
A pergunta do actual referendo é a mesma de 1998, tendo passado duas vezes no escrutínio do Tribunal Constitucional, que tem por missão verificar também se as perguntas submetidas a consulta popular são claras e não enviesadas. Como é que os partidários do status quo só descobriram agora que a pergunta é "capciosa"? A verdade é que a pergunta é mais do que clara. Quando se fala em "despenalização" de certa conduta, tanto no discurso leigo como na linguagem jurídico-penal, o que se pretende é retirá-la do âmbito do direito penal e do Código Penal, ou seja, da esfera dos crimes e das respectivas penas. Portanto, é evidente que a pergunta visa saber quem apoia, ou não, a desclassificação do aborto como crime, nos limites e condições da pergunta.
Mas não se trata de nenhuma "liberalização", como pretendem os críticos. Primeiro, porque a despenalização em causa só abrange as primeiras dez semanas de gestação, ou seja, menos de um terço do tempo normal de gravidez. Como regra, o aborto continuará a ser um ilícito criminal, salvo certas excepções, entre as quais entrará agora a interrupção da gravidez nas primeiras dez semanas. Segundo, mesmo nesse período, o aborto só passará a ser lícito, se realizado em estabelecimento de saúde legal, visto que o principal objectivo do referendo é pôr fim ao aborto clandestino. Terceiro, só a legalização proporcionará condições para fazer acompanhar a decisão de abortar de um mecanismo obrigatório de reflexão da mulher que o pretenda fazer.
A actual situação é que se traduz numa verdadeira liberalização clandestina do aborto, independentemente de prazos e do lugar da sua prática, bem como à margem de qualquer apoio ou ponderação serena da mulher grávida, que se vê frequentemente sozinha e desamparada na sua decisão. Os que criticam a suposta liberalização do aborto "a pedido" deveriam dar-se conta de que o que estão a condenar é a situação existente - ou seja, a que eles querem manter - e não a situação consubstanciada no "sim" ao referendo.
No entanto, a mudança mais surpreendente em relação ao referendo precedente tem a ver com a vaga de opositores à despenalização que agora se manifestam a favor da não punição das mulheres que abortam (com recurso a instrumentos como a suspensão do processo penal ou a invocação de "causas desculpabilizantes" automáticas). Alguns mais afoitos e irresponsáveis vão mesmo ao ponto de ser mais "liberais" do que os mais liberais, defendendo que as mulheres nunca devem ser punidas, quaisquer que sejam as circunstâncias e o estádio da gestação em que pratiquem a interrupção da gravidez! Deixando de lado estas propostas não sérias, o que é que mostra esta súbita e generalizada comiseração pelas mulheres que se sentem forçadas a interromper uma gravidez?
Descontando os casos de puro e rasteiro oportunismo, a principal ilação a retirar dessas posições é a de que muitos adversários da despenalização se deram conta de que a punição penal das mulheres que não desejam prosseguir uma gravidez indesejada já não é politicamente nem humanamente defensável e que, afinal, a defesa da vida intra-uterina tem de ser conciliada com os direitos e interesses legítimos das mulheres. Mas continuam agarrados ao dogma fundamentalista de que o aborto em si mesmo deve continuar a ser um crime.
Este contorcionismo conceptual tem, porém, duas consequências devastadoras. Primeiro, em termos de direito penal é um contra-senso manter um crime em que os principais responsáveis já não são criminalmente responsáveis. Segundo, essas soluções deslegitimam decididamente a justificação tradicional para a repressão penal do aborto, baseada na defesa da vida intra-uterina como valor ao qual deve ser sacrificada sempre a mulher grávida. De facto, como manter esse discurso, se afinal a "criminosa", ou seja, a mulher que aborta, fica isenta de qualquer punição? Terceiro, essas "soluções" não resolvem os problemas mais graves que a actual situação cria, ou seja, o estigma do crime (a mulher que aborta continua a ser "criminosa") e os malefícios do aborto clandestino e inseguro, em termos de risco para a saúde física e psíquica das mulheres. Pois é evidente que, se para as outras pessoas que sejam executantes ou "cúmplices" (médicos, enfermeiros, parteiras, maridos e namorados, etc.), o aborto continua a ser crime, como agora, então é evidente que de pouco ou nada vale esse arremedo de "despenalização" selectiva das mulheres.
Uma comparação com os discursos de há uma década, mostra que enquanto o discurso despenalizador (a favor do "sim"), apesar de politicamente mais plural, se mantém firme e consistente na defesa da despenalização do aborto até às dez semanas, independentemente do juízo individual de cada um sobre a sua censura moral ou religiosa (o que é totalmente legítimo) e sobre a necessidade de o combater, já o discurso adversário se tornou uma cacofonia desafinada e contraditória, onde a única coisa que resta é a compulsão para instrumentalizar o direito penal e a repressão criminal do Estado ao serviço de uma cruzada religiosa ou moral de uma parte da sociedade. Quando os adeptos do "não" à despenalização propriamente dita se sentem tentados a defender (ou a fingir) que também são a favor de uma qualquer "despenalização", então já abandonaram a protecção absoluta do "direito à vida do feto" e só lhes resta impor aos demais, de forma intolerante, os seus próprios códigos morais e religiosos (por mais legítimos que estes sejam).
(Público, Terça-feira, 30 de Janeiro de 2007)